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domingo, 30 de junho de 2013

A EMBOCADURA DO RIO

Texto escrito por LYA LUFT na revista VEJA em homenagem a ROBERTO CIVITA......

Sempre me fascinou  o tempo, rio que incessantemente nos carrega, nós distraídos acumulando bens supérfluos, sedentos de prazeres,carregando culpas inúteis, tramando laços bons ou destrutivos, buscando muito mais do que a nossa dignidade. Quem não quer um cargo melhor, maior salário, mais importância? Quem não há de preferir harmonia, simplicidade, crescimento pessoal, amores bons?
O tempo na minha infância era feminino, em alemão "Die Zeit". Então sem  ninguém ter me dito isso, para mim era uma velha bruxa instalada em todos os relógios, daqueles que davam os quartos de hora, meia hora e hora inteira, cujo tique-taque enchia a casa nas madrugadas misteriosas. A velha tricotava o tempo, mantas intermináveis, suas agulhas de metal tiquetaqueando. Minutos, horas, dias. Mais tarde entendi que o tempo se estendia em anos, décadas, milênios, e comecei a sentir um pouco mais o seu poder. E, torcia, no meu coração de criança: não pare, não pare, não pare o mundo. Um dia percebi que também eu podia parar, e desde então o respeitei muito mais, o Tempo, velho bruxo com seu tear desmedido, tecelão, ou rio com suas correntezas e redemoinhos, e enseadas mansas - não importa:ele tudo carrega, transforma, e faz com que como disse Clarice Lispector, "de repente tinham-se passado vinte anos", ou quarenta: espantoso poder dizer "isso foi há quarenta anos e parecer tão natural.
Por outro lado, esse mesmo gnomo tece laços entre as pessoas: o tempo dos casais que acumulam rancores e mágoas e aprendem a se odiar; o tempo dos casais que elaboram um amor terno e respeitoso - aqueles que de dois extremos de uma sala se entendem só pelo olhar; o tempo que transforma filhos pequenos em homens e mulheres com seu destino, mas mesmo assim podem se manter ligados a nós pelos fios do afeto e dos cuidados; ou se afastam e nem nos lembram quando esses fios são cruelmente cortados e a gente pouco pôde fazer.
O tempo que tem uma adversária poderosa: a memória, em que tudo está enquanto ela estiver acesa em nós. Os belos momentos, os prantos, os abraços, as paisagens, as frustações, as grandes perdas, e aqueles que perdemos: continuam em nós com o rosto e a idade que tinham ao partir. E essa dama singular, a memória, nos ajuda em parte a suportar as despedidas: pois eu ainda sou a menina assombrada pelas curiosidades e inquietações de décadas atrás, minha mãe ainda se enfeita para uma festa diante do seu toucador com o espelho em forma de meia-lua brotando do chão, enquanto eu maravilhada, encolhida na cama de casal, observava. "Mãe, você vai ser a mais bonita da festa. Mãe, você é a mãe mais bonita da escola.Mãe, quando eu crescer quero ser como você" E mesmo quando o tempo e a doença consumiram sua energia, alegria e beleza, e lhe roubaram a memória, me dou conta de que ela, como todas as pessoas, continua em todos os espelhos do mundo. Basta saber olhar. Basta saber lembrar. Alguém me disse recentemente ter visto aquele toucador, como aquele espelho, em alguma casa: que sentimento pugente me invadiu.
O que ficará de nós nos espelhos atemporais, quando desaguarem as apressadas torrentes do rio do tempo, e terminar o trabalho desse gnomo de agulhas delirantes tecendo nossas vidas? Nunca saberemos. Seremos lançados como garrafas com mensagens: nossas vidas, nossos dias, e obras, e dores, e realizações, e decepções, e tudo isso que estamos, a cada minuto, hora, dia, talvez décadas, construindo sem nos darmos conta desse nosso incessante trabalho. Seremos lançados nisso cujo verdadeiro nome é Enigma. Eu o chamo Oceano. Quem sabe, Esplendor.

Um comentário:

  1. Que lindo Virgínia! Adoro Lya Luft, já li muitos livros dela.
    E adorei você ter voltado a postar.
    Leva seu Blog lá para o "Grupo Qual seu Blog?"
    Eu já incluí você.
    Saudades das nossas conversinhas, você vai ao Encontrinho do dia 04 de julho, no Plaza?
    Vai sim, tá?
    Beijos querida.

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